sábado, 9 de julho de 2011

Porões da loucura

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Dentre os territórios desconhecidos que fascinam (e assustam) o homem, aquele que abriga no interior de sua mente parece o mais próximo de nós e, ao mesmo tempo, resistente à compreensão. O Caderno 3 passou por terreno da loucura, nos 125 de criação do antigo (e sombrio) Asilo dos Alienados São Vicente de Paulo, na bairro da Porangaba
Esta semana, em um fim de tarde triste e nublado, o Caderno 3 adentrou às ruínas do antigo prédio do isolamento do antigo Asilo dos Alienados São Vicente de Paulo, que, no dia 1º de março, completa 125 anos de atividades ininterruptas.

Visitar o esquecido prédio, nos fundos do atual Hospital Psiquiátrico que leva o mesmo nome foi impactante. Ali são guardados, literalmente, pedaços de um período obscuro da história que caminha a passos largos para o esquecimento.

Nos restos vazios do tão controvertido quanto necessário manicômio, que chegou a abrigar 300 internos, e hoje atende a 120 pacientes temporários, sendo 80 homens e 40 mulheres, a tensão de dores profundas ainda estão impregnadas pelas paredes largas e carcomidas pelo tempo.

Sabe lá Deus quantos seres vivos estiveram segregados ali, naquele sítio repleto de bananeiras, ladeado pela Lagoa da Porangaba, muro do Sesi, avenidas João Pessoa e Carneiro de Mendonça, inaugurado em 1886, e, até hoje, administrado pela Santa Casa da Misericórdia de Fortaleza. 

No meio daquele caminho angustiante, um porão recuado chama atenção. Nem tanto pela ausência de iluminação, pelos recipientes propícios para propagação do mosquito da dengue ou por ser um perfeito esconderijo de serpentes, abundantes no local. Chama atenção pelo sem número de objetos empilhados, onde se acumulam antigas camas de ferro, uma grande urna crematória, equipamentos de carpintaria, carcaças de computadores, e até os "restos mortais" de um piano de calda.

 "Antigamente, a Santa Casa tinha carpintaria, mas a funerária foi desativada. Eles não produzem mais caixões, daí o maquinário está aqui", diz o atual gerente do Hospital Psiquiátrico, Hawilla Ribeiro. "Do lado de lá, tem as ruínas onde antigamente eram criados porcos, peixes. O espaço desse sítio é grande e o movimento aqui já foi intenso", diz o administrador que está no comando do Hospital Psiquiátrico há três meses.

O isolamento
Rodeado de muros altos, o prédio do isolamento abandonado desde a década de 70, com risco iminente de desabamento, está escondido atrás do mato alto, mas mantém o peso das grades de ferro fundido. Lá dentro, de vivo, somente a sensação de sofrimento impregnada nas celas com suas camas de cimento e sem janelas; nos cubículos de azulejo, onde, provavelmente, os mais agitados passavam horas sob os jatos de água; na antiga enfermaria de porta cerrada; e nos arcos internos das salas onde, com atenção, ainda se ouve ruídos lancinantes provocados por camisas de forças.

Era ali, onde os "loucos" se "curavam" de seus surtos.

Bem ao lado de toda essa ruína, juntinho mesmo, hoje funciona a ala masculina, onde os pacientes mentais fazem sessões de Terapia Ocupacional. "Já tivemos aqui advogados, médicos, padres, pastores, camelôs", diz o terapeuta Pedro Junior, enquanto segura uma folha desenhada com uma longa equação logarítmica. "Isso aqui é de um engenheiro. É curioso, mas muita gente confunde doença mental com deficiência mental. Uma está no emocional, a outra no intelectual. Não é o todo da pessoa que adoece. No caso desse engenheiro, a matemática não exige dele contato social, ele faz muitos cálculos, mas não consegue se relacionar. No entanto, a maioria gosta mesmo é de pintar, porque é uma expressão mais fácil, e quando vão embora, deixam as obras para trás. O contrário do que acontece quando eles escrevem textos. Sempre querem levar com eles, nunca fica no Hospital", conta Pedro.

De tudo o quanto se sabe a respeito da saúde mental no Brasil, a falta de registros históricos é o que mais se destaca. Para abordar o tema "loucura", ainda tão rodeado de tabu, medo, ignorância e preconceito, convidamos para acompanhar na visita, a historiadora Cláudia Freitas Oliveira, que acaba de concluir sua tese de doutorado, intitulada "O asilo de alienados São Vicente de Paulo e a Institucionalização da Loucura no Ceará (1871 - 1920)".

"Esse prédio foi doado pelo então vice-provedor da Santa Casa de Misericórdia, Silva Albano, em 1870, e não se diferenciava de instituições do mesmo porte, como o Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro, ou o Hospital Psiquiátrico do Juqueri, em São Paulo", destaca a pesquisadora. "Os ´loucos´ admitidos no São Vicente de Paula eram provenientes de toda a Província, de cidades como Baturité, Ipu, Sobral, Iguatu. A maioria dos loucos internados no asilo era de indigentes, criminosos recolhidos nas cadeias públicas de Fortaleza ou pessoas que perambulavam pelas ruas, sem família ou moradia", relata.

Inspirado na tortura
A pesquisadora dá detalhes curiosos daquele começo. Como, por exemplo, o registro da internação de uma criança, encontrada nas atas de reuniões do hospício, datadas do início do século XX. "Esse trabalho aborda o período entre 1886 e 1920, quando acontece a ´reforma radical´, cuja intenção era aumentar as dependências da instituição. Com certeza, foi nessa época que chegou o eletrochoque, porque ele não data do final do século XIX. Aliás, fotografei uma dessas relíquias durante uma visita ao São Vicente, em 2005. Mas, ao que parece, o objeto não está mais por aqui".

E conclui. "O que podemos perceber é que, com a reforma antimanicomial, que acontece nas décadas de 60, 70, 80, muitos documentos foram extraviados, perdidos ou destruídos intencionalmente. Havia muitos casos graves de denúncias de maus tratos e violências", denuncia.

Hoje, o Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo tenta implementar o "Museu da Loucura", a partir de um acervo de poucas peças, acomodadas nos belos e apagados corredores do setor administrativo. No local, estão remanescentes de móveis épicos, como órgão , estantes de madeira de lei com portas vidro, balanças de pesar medicamentos, amostras de vidros de remédios, pouquíssimas fotos, uma espingarda, máquinas registradora e de datilografia.

"As mulheres correspondiam à grande maioria do público admitido na instituição, no final do século XIX e início do XX. Algumas delas eram internadas porque rompiam com papeis e normas culturais impostos, como o de serem boas mães e esposas. Tem o exemplo do caso de uma senhora chamada Lídia de Azevedo, cujos registros das atas questionam a internação, se ela realmente sofreria de transtornos mentais. Na época, eles chamaram Meton de Alencar, o primeiro médico daqui, para analisar o diagnóstico. Pela documentação, percebemos que havia um embate entre a Santa Casa e a direção do Hospital", revela Cláudia.

"As autoridades responsáveis precisam olhar para esse lugar, isso aqui é um prédio histórico, abandonar não fará apagará esse período da história. Temos muito para pesquisar e estudar a respeito. Aliás, a Santa Casa guarda manuscritos valiosos dessa trajetória", alerta.

NATERCIA ROCHAREPÓRTER

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